Segundo o policial militar João Dias Ferreira,
ministro do Esporte recebeu propina nas dependências do ministério.
João Dias foi convidado a falar aos deputados (Cristiano Mariz) |
No ano passado, a polícia de Brasília prendeu cinco
pessoas acusadas de desviar dinheiro de um programa criado pelo governo federal
para incentivar crianças carentes a praticar atividades esportivas. O grupo era
acusado de receber recursos do Ministério do Esporte através de organizações
não governamentais (ONGs) e embolsar parte do dinheiro. Chamava atenção o fato
de um dos principais envolvidos ser militante do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB), ex-candidato a deputado e amigo de pessoas influentes e muito próximas
a Orlando Silva, o ministro do Esporte. Parecia um acontecimento isolado, uma
coincidência. Desde então, casos semelhantes pipocaram em vários estados, quase
sempre tendo figuras do PCdoB como protagonistas das irregularidades. Agora,
surgem evidências mais sólidas daquilo que os investigadores sempre
desconfiaram: funcionava dentro do Ministério do Esporte uma estrutura
organizada pelo partido para desviar dinheiro público usando ONGs amigas como
fachada. E o mais surpreendente: o ministro Orlando Silva é apontado como
mentor e beneficiário do esquema.
Em entrevista a VEJA, o policial militar João Dias
Ferreira, um dos militantes presos no ano passado, revela detalhes de como
funciona a engrenagem que, calcula-se, pode ter desviado mais de 40 milhões de
reais nos últimos oito anos. Dinheiro de impostos dos brasileiros que deveria
ser usado para comprar material esportivo e alimentar crianças carentes, mas
que acabou no bolso de alguns figurões e no caixa eleitoral do PCdoB. O relato
do policial impressiona pela maneira rudimentar como o esquema funcionava. As
ONGs, segundo ele, só recebiam os recursos mediante o pagamento de uma taxa
previamente negociada que podia chegar a 20% do valor dos convênios. O partido
indicava desde os fornecedores até pessoas encarregadas de arrumar notas
fiscais frias para justificar despesas fictícias. O militar conta que Orlando
Silva chegou a receber, pessoalmente, dentro da garagem do Ministério do
Esporte, remessas de dinheiro vivo provenientes da quadrilha: “Por um dos
operadores do esquema, eu soube na ocasião que o ministro recebia o dinheiro na
garagem” (veja a entrevista na edição de VEJA desta semana). João Dias dá o
nome da pessoa que fez a entrega. Parte desse dinheiro foi usada para pagar
despesas da campanha presidencial de 2006.
NA MIRA
As fraudes no programa Segundo Tempo são investigadas há mais de três anos,
mas é a primeira vez que o ministro é apontado diretamente como mentor das
irregularidades
|
O programa Segundo Tempo é repleto de boas
intenções. Porém, há pelo menos três anos o Ministério Público, a Polícia
Federal e a Controladoria-Geral da União desconfiam de que exista muita coisa
além da ajuda às criancinhas. Uma das investigações mais completas sobre as
fraudes se deu em Brasília. A capital, embora detentora de excelentes
indicadores sociais, foi muito bem aquinhoada com recursos do Segundo Tempo,
especialmente quando o responsável pelo programa era um político da cidade, o
então ministro do Esporte Agnelo Queiroz, hoje governador do Distrito Federal.
Coincidência? A investigação mostrou que não. A polícia descobriu que o
dinheiro repassado para entidades de Brasília seguia para entidades amigas do
próprio Agnelo, que por meio de notas fiscais frias apenas fingiam gastar a verba
com crianças carentes. Agnelo, pessoalmente, foi acusado de receber dinheiro
público desviado por uma ONG parceira. O soldado João Dias, amigo e aliado
político de Agnelo, controlava duas delas, que receberam 3 milhões de reais,
dos quais dois terços teriam desaparecido, de acordo com o inquérito. Na
ocasião, integrantes confessos do esquema concordaram em falar à polícia.
Contaram em detalhes como funcionava a engrenagem. O soldado João Dias, porém,
manteve-se em silêncio sepulcral — até agora.
Na entrevista, o policial afirma que, na gestão de
Agnelo Queiroz no ministério, o Segundo Tempo já funcionava como fonte do caixa
dois do PCdoB — e que o gerente do esquema era o atual ministro Orlando Silva,
então secretário executivo da pasta. Por nota, a assessoria do governador
Agnelo disse que as relações entre ele e João Dias se limitaram à convivência
partidária, que nem sequer existe mais. VEJA entrevistou também o homem que o
policial aponta como o encarregado de entregar dinheiro ao ministro. Trata-se
de Célio Soares Pereira, 30 anos, que era uma espécie de faz-tudo, de motorista
a mensageiro, do grupo que controlava a arrecadação paralela entre as ONGs
agraciadas com os convênios do Segundo Tempo. “Eu dirigia e, quase todo mês,
visitava as entidades para fazer as cobranças”, contou. Casado, pai de seis
filhos, curso superior de direito inconcluso, Célio trabalha atualmente como
gerente de uma das unidades da rede de academias de ginástica que o soldado
João Dias possui. Célio afirma que, além do episódio em que entregou dinheiro
ao próprio Orlando Silva, esteve pelo menos outras quatro vezes na garagem do
ministério para levar dinheiro. “Nessas vezes, o dinheiro foi entregue a outras
pessoas. Uma delas era o motorista do ministro”, disse a VEJA. O relato mais
impressionante é de uma cena do fim de 2008. “Eu recolhi o dinheiro com
representantes de quatro entidades aqui do Distrito Federal que recebiam verba
do Segundo Tempo e entreguei ao ministro, dentro da garagem, numa caixa de
papelão. Eram maços de notas de 50 e 100 reais”, conta.
Célio afirma que um dirigente do PCdoB, Fredo
Ebling, era encarregado de indicar a quem, quando e onde entregar dinheiro.
“Ele costumava ir junto nas entregas. No dia em que levei o dinheiro para o
ministro, ele não pôde ir. Me ligou e disse que era para eu estar às 4 e meia
da tarde no subsolo do ministério e que uma pessoa estaria lá esperando. O
ministro estava sentado no banco de trás do carro oficial. Ele abriu o vidro e
me cumprimentou. O motorista dele foi quem pegou a caixa com o dinheiro e
colocou no porta-malas do carro”, afirma. Funcionário de carreira do Congresso
Nacional, chefe de gabinete da liderança do partido na Câmara dos Deputados,
Fredo Ebling é um quadro histórico entre os camaradas comunistas. Integrante da
Secretaria de Relações Internacionais do PCdoB nacional, ele foi candidato a
senador e a deputado por Brasília. Em 2006, conseguiu um lugar entre os
primeiros suplentes e, no final da legislatura passada, chegou a assumir por
vinte dias o cargo de deputado federal. João Dias diz que Fredo Ebling era um
dos camaradas destacados por Orlando Silva para coordenar a arrecadação entre
as entidades. O policial relata um encontro em que Ebling abriu o bagageiro de
seu Renault Mégane e lhe mostrou várias pilhas de dinheiro. “Ele disse que ia
levar para o ministro”, afirma. Ebling nega. “Eu não tinha esse papel”, diz. O
ex-deputado diz que conhece João Dias, mas não se lembra de Célio.
A lua de mel do policial com o ministério e a
cúpula comunista começou a acabar em 2008, quando passaram a surgir denúncias
de irregularidades no Segundo Tempo. Ele afirma que o ministério, emparedado
pelas suspeitas, o deixou ao léu. “Eu tinha servido aos interesses deles e de
repente, quando se viram em situação complicada, resolveram me abandonar.
Tinham me prometido que não ia ter nenhum problema com as prestações de
contas.” O policial diz que chegou a ir fardado ao ministério, mais de uma vez,
para cobrar uma solução, sob pena de contar tudo. No auge da confusão, ele se
reuniu com o próprio Orlando Silva. “O Orlando me prometeu que ia dar um jeito
de solucionar e que tudo ia ficar bem”, diz. O ministro, por meio de nota,
confirma ter se encontrado com o policial. Diz que o recebeu em audiência, mas
nega que soubesse dos desvios ou de cobrança de propina. “É uma imputação
falsa, descabida e despropositada. Acionarei judicialmente os caluniadores”,
afirmou o ministro, em nota.
Em paralelo às investigações oficiais, João Dias
respondeu por desvio de conduta na corporação militar. A Polícia Militar de
Brasília oficiou ao ministério em busca de informações sobre os convênios. A
resposta não foi nada boa para o soldado: dizia que ele estava devendo 2
milhões aos cofres públicos por irregularidades nas prestações de contas. João
Dias então subiu o tom das ameaças. Em abril de 2008, quando foi chamado à PM
para dar satisfações e tomou conhecimento do ofício, ele procurou pessoalmente
o então secretário nacional de Esporte Educacional, Júlio Cesar Filgueira, para
tirar satisfação. O encontro foi na secretaria. O próprio João Dias conta o que
aconteceu: “Eu fui lá armado e dei umas pancadas nele. Dei várias coronhadas e
ainda virei a mesa em cima dele. Eles me traíram”. Júlio Filgueira, também
filiado ao PCdoB de Orlando Silva, era responsável por tocar o programa. A
pressão deu certo: o ministério expediu um novo ofício à Polícia Militar
amenizando a situação de Dias. O documento pedia que fosse desconsiderado o
relatório anterior. A agressão que João Dias diz ter cometido dentro da repartição
pública passou em branco. “Eles não tiveram coragem de registrar queixa porque
ia expor o esquema”, diz o soldado. Indagado por VEJA, o gabinete de Orlando
Silva respondeu que “não há registro de qualquer agressão nas dependências do
Ministério do Esporte envolvendo estas pessoas”. O ex-secretário Júlio
Filgueira, que deixou o cargo pouco depois da confusão, confirma ter recebido o
policial mas nega que tenha sido agredido. “Ele estava visivelmente irritado,
mas essa parte da agressão não existiu”, diz. A polícia e o Ministério Público
têm uma excelente oportunidade para esclarecer o que se passava no terceiro tempo no
Ministério do Esporte. As testemunhas, como se viu, estão prontas para entrar
em campo.
Fonte: Veja.com
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